E agora, José? Atendimento a migrantes e refugiados em tempos de crise e vulnerabilidades
[ENGLISH AND FRENCH BELOW]
Em momentos de crise, a proteção de migrantes e refugiados costuma revelar tanto a força quanto as fragilidades das políticas públicas brasileiras. Situações como desastres ambientais, emergências sanitárias ou colapsos econômicos expõem a precariedade das redes de apoio que muitos recém-chegados ainda tentam construir. Quando abrigos desmoronam, bairros inteiros são alagados ou serviços de saúde se veem sobrecarregados, esses grupos são frequentemente os primeiros a sentir o impacto, seja pela ausência de vínculos familiares, seja pela dificuldade de compreender orientações oficiais que chegam apenas em português.
O atendimento emergencial, nesses cenários, ultrapassa a lógica assistencial clássica. Ele envolve identificar rapidamente quem está em risco, garantir abrigo imediato e, sobretudo, oferecer informações acessíveis sobre rotas de fuga, serviços de saúde e pontos de distribuição de mantimentos. Em vários municípios, equipes de proteção social têm observado que a presença de mediadores culturais, formais ou voluntários, faz diferença decisiva na hora de acionar os serviços e evitar que famílias migrantes permaneçam invisíveis durante operações de resgate.
A legislação brasileira, reforçada por normas internacionais de direitos humanos, determina que a atuação estatal em contextos de calamidade deve ser universal e não discriminatória. Essa diretriz exige que políticas de acolhimento emergencial levem em conta necessidades específicas: documentos perdidos durante a travessia, pessoas que não conhecem o território, indivíduos que chegam traumatizados por conflitos ou perseguições. Em crises prolongadas, como epidemias ou falta de moradia crônica, a articulação entre SUS, SUAS e Defesa Civil torna-se indispensável para garantir acompanhamento contínuo, acesso a cuidados de saúde mental, encaminhamento a programas de renda e regularização migratória.
O desafio, contudo, é estrutural. O Brasil ainda opera com sistemas de alerta e resposta cuja execução varia de um município para outro, deixando brechas que afetam desproporcionalmente quem não domina o idioma ou não possui documentação organizada. Mesmo assim, experiências pontuais mostram que, quando o poder público atua em parceria com organizações comunitárias, instituições religiosas e redes de apoio de migrantes, a resposta se torna mais ágil e menos excludente. Nessas horas, mais do que um protocolo, o atendimento emergencial depende da capacidade de reconhecer a vulnerabilidade não como um traço do indivíduo, mas como resultado direto do contexto em que ele foi lançado e da urgência de garantir condições básicas de segurança e dignidade.
Por exemplo, a pandemia de Covid-19 evidenciou, com nitidez desconfortável, como desigualdades pré-existentes se amplificam em situações de emergência sanitária. Para migrantes e refugiados no Brasil, o acesso ao SUS tornou-se simultaneamente uma porta vital de proteção e um cenário de obstáculos cotidianos. A universalidade constitucional da saúde garantiu que a vacinação, os testes e o tratamento fossem oferecidos independentemente da nacionalidade ou da situação migratória, o que reforçou a coerência do sistema brasileiro com normas internacionais de direitos humanos. Contudo, a prática revelou nuances: dificuldades de comunicação, desinformação sobre elegibilidade e ausência de documentação atualizada atrasaram o ingresso de muitos nos serviços de atenção básica.
Em diversas regiões, unidades de saúde precisaram adaptar seus fluxos para acolher pessoas que não compreendiam os protocolos de isolamento, não tinham acesso à internet para acompanhar agendamentos ou viviam em moradias coletivas que impossibilitavam o distanciamento. Profissionais relataram que o medo de procurar atendimento (especialmente entre migrantes em situação documental precária) levou ao agravamento de casos evitáveis. Somente com a inserção de organizações comunitárias, iniciativas de tradução e campanhas específicas em múltiplos idiomas foi possível ampliar a cobertura vacinal e reduzir a subnotificação de sintomas.
A experiência da pandemia deixou como legado a percepção de que a garantia formal de acesso ao SUS precisa vir acompanhada de práticas ativas de inclusão. Em emergências sanitárias, não basta que o serviço esteja juridicamente aberto; é necessário que ele seja compreensível, culturalmente acessível e capaz de alcançar quem, por barreiras sociais, econômicas ou linguísticas, permanece à margem das políticas de saúde. Para migrantes e refugiados, esse aprendizado se converte em exigência permanente: a de que o sistema de saúde reconheça suas especificidades e não dependa apenas da capacidade individual de adaptação para assegurar aquilo que a Constituição já prometeu: o direito universal à vida e ao cuidado.
Observação:
O título "E agora, José?" deriva de um poema de Carlos Drummond de Andrade que, posteriormente, se tornou uma canção na voz de Paulo Diniz e é uma expressão popular na língua portuguesa, sobretudo no Brasil. É muito usada quando uma situação extrema, repentina, inesperada e preocupante acontece, quando parece que não há mais nada a se fazer. Ouça a versão cantada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=-xd507b9QYk
Foto: Lauro Alves SECOM (CC BY-NC 2.0 DEED). Por National Geographic Brasil. Casas submersas na região metropolitana de Porto Alegre: as inundações foram os eventos mais comuns representando 43% do total de desastres naturais, afetando 2,3 bilhões de pessoas no mundo, segundo a ONU.
Eixo Temático: Em Tempos de Crise: Atendimento a Emergências e Vulnerabilidades
[ENGLISH VERSION]
Tradução automatizada por DeepL com revisão humana por Thayla Bicalho Bertolozzi
And what about now, José? Assistance to migrants and refugees in times of crisis and vulnerability.
In times of crisis, the protection of migrants and refugees often reveals both the strengths and weaknesses of Brazilian public policies. Situations such as environmental disasters, health emergencies, or economic collapses expose the precariousness of the support networks that many newcomers are still trying to build. When shelters collapse, entire neighborhoods are flooded, or health services become overwhelmed, these groups are frequently the first to feel the impact, whether due to the absence of family ties or the difficulty in understanding official guidelines that arrive only in Portuguese.
Emergency assistance in these scenarios goes beyond the classic welfare logic. It involves quickly identifying who is at risk, guaranteeing immediate shelter, and, above all, offering accessible information about escape routes, health services, and food distribution points. In several municipalities, social protection teams have observed that the presence of cultural mediators, formal or volunteer, makes a decisive difference when activating services and preventing migrant families from remaining invisible during rescue operations.
Brazilian legislation, reinforced by international human rights standards, dictates that state action in disaster contexts must be universal and non-discriminatory. This guideline requires that emergency reception policies take into account specific needs: documents lost during the journey, people unfamiliar with the territory, individuals arriving traumatized by conflict or persecution. In prolonged crises, such as epidemics or chronic homelessness, coordination between the Unified Health System (SUS), the Unified Social Assistance System (SUAS), and Civil Defense becomes indispensable to guarantee continuous monitoring, access to mental health care, referral to income programs, and immigration regularization.
The challenge, however, is structural. Brazil still operates with alert and response systems whose implementation varies from one municipality to another, leaving gaps that disproportionately affect those who do not master the language or do not have organized documentation. Even so, specific experiences show that when the public authorities act in partnership with community organizations, religious institutions, and migrant support networks, the response becomes more agile and less exclusionary. At times like these, more than a protocol, emergency care depends on the ability to recognize vulnerability not as an individual trait, but as a direct result of the context in which they find themselves and the urgency of guaranteeing basic conditions of safety and dignity.
For example, the Covid-19 pandemic highlighted, with uncomfortable clarity, how pre-existing inequalities are amplified in health emergencies. For migrants and refugees in Brazil, access to the SUS (Unified Health System) became simultaneously a vital gateway to protection and a scenario of daily obstacles. The constitutional universality of healthcare ensured that vaccination, testing, and treatment were offered regardless of nationality or migratory status, which reinforced the coherence of the Brazilian system with international human rights standards. However, practice revealed nuances: communication difficulties, misinformation about eligibility, and lack of updated documentation delayed the entry of many into primary care services.
In several regions, health units had to adapt their procedures to accommodate people who did not understand isolation protocols, lacked internet access to manage appointments, or lived in collective housing that made social distancing impossible. Professionals reported that the fear of seeking care (especially among migrants with precarious documentation) led to the worsening of preventable cases. Only with the inclusion of community organizations, translation initiatives, and specific campaigns in multiple languages was it possible to expand vaccination coverage and reduce the underreporting of symptoms.
The pandemic experience left as a legacy the perception that the formal guarantee of access to the SUS (Brazilian Unified Health System) needs to be accompanied by active inclusion practices. In health emergencies, it is not enough for the service to be legally open; it needs to be understandable, culturally accessible, and capable of reaching those who, due to social, economic, or linguistic barriers, remain on the margins of health policies. For migrants and refugees, this learning becomes a permanent requirement: that the health system recognizes their specific needs and does not depend solely on the individual's capacity for adaptation to ensure what the Constitution has already promised: the universal right to life and care.
Note:
The title "E agora, José?" (and what about now, José?) comes from a poem by Carlos Drummond de Andrade which later became a song sung by Paulo Diniz and is a popular expression in the Portuguese language, especially in Brazil. It is often used when an extreme, sudden, unexpected, and worrying situation occurs, when it seems like there is nothing left to do. Listen to the sung version here: https://www.youtube.com/watch?v=-xd507b9QYk
[FRENCH VERSION]
Disponible sur : https://docs.google.com/document/d/1LQGVLfb5E7yCnYdj5SxOiXUIMDp7fXygZt9_s9bt12s/edit?usp=sharing
Por Thayla Bicalho Bertolozzi
Doutoranda em Relações Internacionais (USP), mestra em Humanidades e Direitos (USP), graduada em Relações Internacionais (USP) e graduanda em Direito (USP). Contato: thaylabertolozzi@usp.br