Migrar vai além do deslocamento: breves informações acerca da Rede de Proteção ao migrante e refugiado (assistência social, auxílios e direitos socioeconômicos)
[ENGLISH AND FRENCH BELOW]
A rede de proteção destinada a imigrantes e refugiados no Brasil se formou de modo gradual, combinando preceitos constitucionais, normas internacionais e instrumentos administrativos que visam assegurar condições mínimas de dignidade a pessoas em mobilidade. Embora cada política tenha nascido em momentos distintos, elas se articulam hoje como um sistema que opera em torno da lógica da assistência social, da garantia de auxílios emergenciais e do reconhecimento de direitos socioeconômicos que independem da nacionalidade.
O ponto de partida é a Constituição de 1988, que consagrou a universalidade do acesso à saúde, à educação e à assistência social, afastando qualquer limitação baseada na origem do indivíduo. Essa diretriz encontrou amparo nas Convenções de Genebra sobre Refugiados, que o Brasil incorporou ao ordenar que a proteção não seja vista como benefício discricionário, mas como dever jurídico do Estado. A partir daí, a Lei nº 9.474/1997 e a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) reforçaram a ideia de que o status migratório não pode servir como barreira para o acesso a serviços públicos e benefícios essenciais.
No campo da assistência social, o SUAS tornou-se a porta de entrada para a maior parte das demandas. CRAS e CREAS, apesar de enfrentarem limitações estruturais, atuam na orientação documental, no acesso ao Cadastro Único e na articulação com políticas de saúde e educação. Para muitos recém-chegados, esse primeiro atendimento é decisivo: é por meio dele que se obtém informações sobre regularização migratória, portas de trabalho e redes comunitárias de apoio. Essa interação inicial também evidencia o quanto a proteção social brasileira se apoia em práticas locais, construídas no cotidiano dos municípios.
Quanto aos auxílios, imigrantes e refugiados, desde que atendam aos critérios socioeconômicos, podem ser incluídos em programas como o Bolsa Família e benefícios eventuais, além de políticas estaduais e municipais voltadas para proteção emergencial, muitas vezes via Cadastro Único (CadÚnico). A jurisprudência administrativa e judicial tem reiterado que a nacionalidade não é fator legítimo de exclusão, sobretudo quando o benefício se destina a mitigar riscos sociais graves, como fome ou falta de moradia. Em situações de acolhimento humanitário, como ocorreu com fluxos mais recentes, medidas extraordinárias foram adotadas para facilitar o acesso a documentação básica, condição indispensável para a fruição de direitos.
No campo da saúde mental, a presença dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) dentro do SUS desempenha papel crucial na rede de acolhimento a imigrantes e refugiados. Esses serviços, orientados pela lógica territorial e pela atenção psicossocial, funcionam como espaços de cuidado contínuo, capazes de atender demandas que vão desde sofrimento psíquico decorrente do processo migratório até quadros mais complexos. Para muitos recém-chegados, especialmente aqueles expostos a perseguições, deslocamentos forçados ou violência traumática, o acesso ao CAPS representa a primeira oportunidade de reconstruir vínculos e reorganizar a própria trajetória.
A legislação nacional reforça a prioridade na atenção a pessoas com deficiência, incluindo o espectro autista, tanto no SUS quanto nas políticas de assistência. Normas como a Lei Brasileira de Inclusão e a Lei nº 12.764/2012 ("Lei Berenice Piana") determinam que indivíduos com autismo devem receber atendimento integral e prioritário, o que abrange não apenas o acesso a consultas, terapias e tratamentos especializados, mas também a adaptação de fluxos de atendimento e a eliminação de barreiras comunicacionais e culturais. Para imigrantes e refugiados, essa prioridade adquire contornos específicos: muitas famílias chegam ao país sem diagnósticos formais, sem histórico médico traduzido ou sem compreender como acessar os serviços disponíveis.
Os CAPS, nesse contexto, tornam-se pontos de articulação entre saúde mental, proteção social e políticas de inclusão. Embora enfrentem limitações de equipe e estrutura, têm desenvolvido práticas de acolhimento intercultural, mediação linguística informal e encaminhamentos coordenados com escolas, CRAS e unidades básicas de saúde. Assim, a prioridade legal concedida às pessoas com deficiência (inclusive crianças e adultos autistas) se traduz, na prática, em uma rede de cuidado que busca reduzir vulnerabilidades e garantir que o direito ao tratamento não dependa da origem, da língua ou do status migratório.
Os direitos socioeconômicos, por sua vez, dependem de uma articulação mais ampla. O trabalho, ainda que protegido pela legislação brasileira independentemente da nacionalidade, é atravessado por obstáculos concretos, como a dificuldade de reconhecimento de diplomas e a informalidade. Mesmo assim, decisões administrativas e programas de integração laboral têm reconhecido a necessidade de adaptar procedimentos a realidades migratórias, evitando que a proteção seja apenas formal. Na saúde e na educação, a experiência brasileira revela uma política mais consolidada: o SUS e a escola pública operam como espaços efetivos de inclusão, seja pela ausência de exigência de comprovação de residência legal, seja pela existência de protocolos de acolhimento cultural e linguístico.
Ao observar esse conjunto, percebe-se que a rede de proteção não funciona como um bloco uniforme, mas como uma constelação de políticas que se conectam de forma mais ou menos eficiente conforme o território, a formação dos agentes públicos e o nível de mobilização comunitária. Ainda assim, o Brasil consolidou um marco normativo que, pelo menos em tese, impede que imigrantes e refugiados sejam relegados à margem da proteção social. O desafio atual consiste em reduzir a distância entre a letra da lei e a operacionalidade cotidiana, garantindo que a promessa de universalidade inscrita na Constituição alcance aqueles que chegam ao país em busca de segurança, estabilidade e reconstrução de suas vidas.
Sobre o CRAS (PT/EN): https://www.gov.br/pt-br/servicos/acessar-o-cras-centro-de-referencia-da-assistencia-social
Sobre o CREA (PT/EN): https://www.gov.br/mds/pt-br/acoes-e-programas/suas/unidades-de-atendimento/centro-de-referencia-especializado-de-assistencia-social-creas
Sobre o CadÚnico / Cadastro Único (PT/EN): https://www.gov.br/pt-br/servicos/inscrever-se-no-cadastro-unico-para-programas-sociais-do-governo-federal
Sobre o SUAS (PT/EN): https://www.gov.br/mds/pt-br/acoes-e-programas/suas
Sobre os CAPS (PT/EN): https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saes/desmad/raps/caps
Foto: Maria Victória Oliveira. Painel no Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI) Oriana Jara, iniciativa do Sefras, em São Paulo. Revista Casa Comum.
Eixo temático: Rede de Proteção: Assistência Social, Auxílios e Direitos Socioeconômicos
Por Thayla Bicalho Bertolozzi
Doutoranda em Relações Internacionais (USP), mestra em Humanidades e Direitos (USP), graduada em Relações Internacionais (USP) e graduanda em Direito (USP). Contato: thaylabertolozzi@usp.br
[ENGLISH VERSION]
Tradução automatizada por DeepL com revisão humana por Thayla Bicalho Bertolozzi
The protection network for immigrants and refugees in Brazil was formed gradually, combining constitutional precepts, international norms, and administrative instruments aimed at ensuring minimum conditions of dignity for people in mobility. Although each policy emerged at different times, they are now articulated as a system that operates around the logic of social assistance, the guarantee of emergency aid, and the recognition of socioeconomic rights that are independent of nationality.
The starting point is the 1988 Constitution, which enshrined the universality of access to health, education, and social assistance, eliminating any limitation based on an individual's origin. This guideline found support in the Geneva Conventions on Refugees, which Brazil incorporated by ordering that protection should not be seen as a discretionary benefit, but as a legal duty of the State. From then on, Law No. 9,474/1997 and the Migration Law (Law No. 13,445/2017) reinforced the idea that migratory status cannot serve as a barrier to accessing public services and essential benefits.
In the field of social assistance, the Unified Social Assistance System (SUAS) has become the gateway for most demands. CRAS (Reference Centers for Social Assistance) and CREAS (Specialized Reference Centers for Social Assistance), despite facing structural limitations, work in document guidance, access to the Single Registry, and coordination with health and education policies. For many newcomers, this initial assistance is crucial: it is through this that they obtain information about migratory regularization, job opportunities, and community support networks. This initial interaction also highlights how much Brazilian social protection relies on local practices, built in the daily life of municipalities.
Regarding aid, immigrants and refugees, provided they meet socioeconomic criteria, can be included in programs such as Bolsa Família and occasional benefits, as well as state and municipal policies aimed at emergency protection, often through the Unified Registry (CadÚnico). Administrative and judicial jurisprudence has reiterated that nationality is not a legitimate factor for exclusion, especially when the benefit is intended to mitigate serious social risks, such as hunger or homelessness. In situations of humanitarian reception, as occurred with more recent flows, extraordinary measures were adopted to facilitate access to basic documentation, an indispensable condition for the enjoyment of rights.
In the field of mental health, the presence of Psychosocial Care Centers (CAPS) within the SUS (Brazilian Unified Health System) plays a crucial role in the network of support for immigrants and refugees. These services, guided by territorial logic and psychosocial care, function as spaces for continuous care, capable of meeting demands ranging from psychological suffering resulting from the migratory process to more complex conditions. For many newcomers, especially those exposed to persecution, forced displacement, or traumatic violence, access to CAPS (Psychosocial Care Centers) represents the first opportunity to rebuild connections and reorganize their own lives.
National legislation reinforces the priority of care for people with disabilities, including those on the autism spectrum, both within the SUS (Brazilian Unified Health System) and in social assistance policies. Laws such as the Brazilian Inclusion Law and Law No. 12.764/2012 ("Berenice Piana Law") stipulate that individuals with autism should receive comprehensive and priority care, which includes not only access to consultations, therapies, and specialized treatments, but also the adaptation of care flows and the elimination of communication and cultural barriers. For immigrants and refugees, this priority takes on specific contours: many families arrive in the country without formal diagnoses, without translated medical records, or without understanding how to access available services.
In this context, CAPS become points of articulation between mental health, social protection, and inclusion policies. Although they face limitations in terms of staff and infrastructure, they have developed practices of intercultural reception, informal linguistic mediation, and coordinated referrals with schools, CRAS (Social Assistance Reference Centers), and basic health units. Thus, the legal priority granted to people with disabilities (including autistic children and adults) translates, in practice, into a care network that seeks to reduce vulnerabilities and ensure that the right to treatment does not depend on origin, language, or migratory status.
Socioeconomic rights, in turn, depend on broader articulation. Work, although protected by Brazilian law regardless of nationality, is hampered by concrete obstacles, such as the difficulty in recognizing diplomas and informality. Even so, administrative decisions and labor integration programs have recognized the need to adapt procedures to migratory realities, preventing protection from being merely formal. In health and education, the Brazilian experience reveals a more consolidated policy: the SUS (Unified Health System) and public schools operate as effective spaces for inclusion, whether through the absence of requirements for proof of legal residency or through the existence of protocols for cultural and linguistic integration.
Observing this set of factors, it becomes clear that the protection network does not function as a uniform block, but as a constellation of policies that connect more or less efficiently depending on the territory, the training of public agents, and the level of community mobilization. Even so, Brazil has consolidated a normative framework that, at least in theory, prevents immigrants and refugees from being relegated to the margins of social protection. The current challenge is to reduce the gap between the letter of the law and daily operation, ensuring that the promise of universality enshrined in the Constitution reaches those who arrive in the country seeking security, stability, and the reconstruction of their lives.
[FRENCH VERSION]
Disponible sur: https://docs.google.com/document/d/1LQGVLfb5E7yCnYdj5SxOiXUIMDp7fXygZt9_s9bt12s/edit?usp=sharing
Por Thayla Bicalho Bertolozzi
Doutoranda em Relações Internacionais (USP), mestra em Humanidades e Direitos (USP), graduada em Relações Internacionais (USP) e graduanda em Direito (USP). Contato: thaylabertolozzi@usp.br